Pois a qual dos anjos Deus jamais disse: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei, E em outra vez: Eu lhe serei por Pai, e ele me será por Filho?
Comentário de Frederic Farrar
Pois] Os próximos parágrafos provam “o nome mais excelente”. Pela obra na terra, o Deus-homem Jesus Cristo obteve essa posição superior na ordem e hierarquia da salvação, tornando-se melhor que os anjos, não só em dignidade, mas em relação à redenção do homem. Em outras palavras, o direito universal de Cristo é aqui exposto “não como prerrogativa metafísica, mas dispensacional”. Que fosse necessário ao autor apresentar essa prova pode parecer estranho, mas a necessidade é confirmada pelo empenho com que se dedica à tarefa. Para nós, a dificuldade está no modo da prova, não no resultado; mas para seus leitores, o resultado não estava claro, enquanto aceitavam livremente o método. O raciocínio foi bem estudado por W. Robertson Smith no Expositor de 1881, de quem tomo várias sugestões. “Nada se acrescenta à superioridade intrínseca do ser de Cristo, mas Ele ocupa diante de nós posição mais alta do que os anjos jamais ocuparam. Todo o argumento gira não em dignidade pessoal, mas em função na administração da economia da salvação.” Talvez a esta epístola devamos frases em livros judaicos posteriores como “O Rei Messias será exaltado acima de Abraão, Moisés e dos anjos ministradores” (Jalkut Shimeoni; veja Schöttgen, p. 905).
a qual dos anjos Deus jamais disse] O “Ele” é Deus. Esta forma indireta de referência a Deus é comum na literatura rabínica. O argumento aqui é do silêncio das Escrituras, como em Hebreus 1:13; 2:16; 7:13-14.
Tu és meu Filho…] A citação é do Salmo 2:7 (compare Salmo 89:20, 26-27). O autor não precisa provar que essas passagens se referem a Cristo; menos ainda que Cristo é Filho de Deus. Todos os cristãos admitiam esse ponto. Muitos judeus seguiam a visão comum dos rabinos de que todas as profecias do Antigo Testamento podiam ser aplicadas ao Messias. Pedro, em Atos 13:33, também aplica esse verso a Cristo, e os grandes rabinos Kimchi e Rashi admitem que o Salmo era aceito em sentido messiânico na antiguidade. A divindade de Cristo era uma verdade presumida ao falar com cristãos.
Essas passagens não são apresentadas como provas de que Jesus era o Filho de Deus – o que os leitores não contestavam –, mas como argumentos ad hominem. Ou seja, eram argumentos para os destinatários imediatos, que não duvidavam dos pressupostos usados. O autor tinha de confirmar uma fé vacilante e estagnada (Hebreus 6:12; 12:25), não convencer quem negava as verdades centrais do cristianismo.
Nossa convicção nesses assuntos repousa em bases históricas e espirituais, e só depende em grau menor de aplicações indiretas das Escrituras. Ainda assim, quanto a estas, vemos que: (1) há “harmonia preestabelecida” entre a linguagem usada e seu cumprimento em Cristo; (2) a linguagem é frequentemente muito além do alcance imediato, apontando para um cumprimento ideal e futuro; (3) por séculos antes de Cristo, era interpretada em sentido messiânico; (4) esse sentido messiânico foi amplamente justificado pela lenta marcha da história. Há um meio termo entre ver tais passagens como vaticínios adivinhatórios, reconhecidos como tal por seus autores, e descartá-las como se não tivessem nada de profético. Na verdade, os próprios judeus as viam corretamente como misturando presente e futuro, o rei teocrático e o Messias. Ninguém entra no real significado sem perceber que toda a melhor literatura judaica era profética no mais alto sentido, centrando-se na esperança messiânica resultante da relação de Israel com Yahweh, que os elevava sobre todas as nações. O caráter divino dessa esperança foi justificado e mais que justificado pela grandeza de seu cumprimento. Uma exegese histórica e simples ainda deixa amplo espaço para a cristologia no Antigo Testamento. Embora o velho aforismo – Novum Testamentum in Vetere latet, Vetus in Novo patet – tenha sido muito abusado por intérpretes alegóricos, todo cristão instruído admitirá seu fundo de verdade. O germe da profecia messiânica já estava na própria ideia de teocracia e povo separado.
eu hoje te gerei] Paulo diz (Romanos 1:4) que Jesus foi “declarado” ou “constituído” Filho de Deus, com poder, pela ressurreição dos mortos. O aoristo ali aponta para um momento definido – a ressurreição (compare Atos 13:33). Em outros sentidos, “hoje” poderia ser aplicado à encarnação (Lucas 1:31), à ascensão ou à geração eterna. Mas esta última – explicando “hoje” como o “agora eterno” de Deus, nunc stans da eternidade –, embora adotada por Orígenes (que diz, com beleza, que no “hoje” de Deus não há manhã nem tarde) e por Agostinho, é provavelmente uma “argúcia tardia da teologia”. Calvino a chama de “frívola argúcia agostiniana”, mas o argumento mais forte a seu favor é que Filo tem concepção semelhante. No original, aplicava-se ao dia da inauguração completa de Davi como rei em Sião. Nenhum momento único pode aplicar-se à geração eterna, e adotar a ideia de Filo de que “hoje” significa “para sempre”, ou que “toda a eternidade” é o hoje de Deus, aqui seria deslocado. Talvez “hoje” seja, por assim dizer, parte acidental da citação: pertence mais à profecia literal que à aplicação messiânica. A Igreja entendeu que “hoje” se refere à ressurreição ao designar o segundo salmo para o domingo de Páscoa.
Eu lhe serei por Pai] 2Samuel 7:14 (LXX). As palavras eram aplicáveis primeiramente a Salomão, mas sem mais argumentação não ajudariam o propósito do autor, se ele não pudesse assumir que ninguém duvidava do método tipológico de exegese. Provavelmente a promessa a Davi aqui citada conecta-se diretamente ao trecho anterior do Salmo 2.
ele me será por Filho] A citação (compare Filo, De Leg. Allegor. iii. 8), ainda que primariamente aplicada a Salomão, tem sentido mais amplo, profetizando a vinda de um rei teocrático perfeito. Os “anjos” poderiam, em objeção, ser chamados de “filhos de Deus” em Gênesis 6:2; Jó 1:6; 2:1; 38:7; Daniel 3:25. Nesses textos, contudo, o manuscrito alexandrino da LXX, que parece ser o usado por este autor (enquanto Paulo usa outro tipo, o vaticano), traz “anjos” e não “filhos”. Se se alegar que em Salmo 29:1; 89:7 até o alexandrino traz “filhos”, talvez o autor queira distinguir (1) entre sentidos altos e baixos da palavra “filho”; ou (2) entre “filhos de Elohim” e “filhos de Yahweh”, já que Elohim é nome mais baixo e vago que Yahweh, sendo aplicado até a anjos e seres humanos; ou (3) não considera o termo “filhos” característico dos anjos. Mostra tamanha intimidade com os Salmos que supor esquecimento desses textos é inadmissível. [Farrar, ⚠️ comentário aguardando revisão]
<Todas as Escrituras em português citadas são da Bíblia Livre (BLIVRE), Copyright © Diego Santos, Mario Sérgio, e Marco Teles, com adaptação de Luan Lessa – janeiro de 2021.