Mártir

A palavra mártir vem do termo grego mártys, que significa “testemunha”. Nos textos de Apocalipse 17:6, Apocalipse 2:13 (Antipas) e Atos 22:20 (Estêvão), o termo mártys aparece, mas traduzido como “testemunha”. Como Jesus é descrito como alguém que “testemunhou” ao aceitar a morte (Apocalipse 1:5; ver também 1Timóteo 6:13), o termo passou naturalmente a ser usado para seus seguidores que sofreram por causa dEle. O uso mais comum de palavras como martyria (testemunho) e martyrein (dar testemunho) no sentido de sofrer por Cristo só se fixou por volta da metade do século II (veja J. B. Lightfoot sobre Clemente, Carta aos Coríntios 5, em Apostolic Fathers, 1890).

A situação dos cristãos

O Senhor Jesus havia avisado que o mundo teria uma atitude hostil contra os seus seguidores (Mateus 5:11). A era apostólica foi uma confirmação constante dessa palavra. Costuma-se destacar um ou dois períodos como os de maior perseguição, mas é importante lembrar que a perseguição era praticamente contínua. No início, os perseguidores eram apenas os judeus. Além das perseguições descritas no livro de Atos, há outras mencionadas rapidamente em textos como 1Tessalonicenses 2:14, Tiago 2:6; 5:10 e Hebreus 10:34. Esse texto mostram que os judeus, não apenas da Palestina, mas também os espalhados pelo mundo (a chamada Diáspora), estavam ativos em forçar os cristãos a pagar por sua fé, impondo-lhes opressões legais e sociais. No começo, os romanos não distinguiam cristãos de judeus e davam aos cristãos a mesma tolerância legal que ofereciam aos judeus. Esse erro aparece, por exemplo, quando Suetônio diz que os distúrbios em Roma foram causados por “Chrestus” (provavelmente uma referência distorcida a Cristo) e quando o comandante romano Lísias pensa que Paulo é um zelote (Atos 21:38). Mas tudo mudou com o imperador Nero. A partir dele, ser cristão já era motivo suficiente para ser condenado à morte (ver isto sustentado em Hardy, Studies in Roman History, cap. iv, contra Ramsay, em Church in the Roman Empire5, cap. xi. sect. 7). Tanto o povo quanto os governantes passaram a ver o cristianismo como uma ameaça à sociedade (“odium humani generis”), pois causava divisões em famílias e grupos sociais. Além disso, a fé cristã passou a ser considerada um crime político porque era incompatível com a adoração ao imperador — os cristãos se recusavam a “adorar a imagem da besta” (Apocalipse 13:15). Por isso, as autoridades romanas viam a fé cristã como um ato de anarquia. Nenhuma lei específica foi criada contra os cristãos, mas havia ordens permanentes da polícia para que a religião fosse reprimida. A carta de Plínio ao imperador Trajano (Epístolas 10.97), que menciona uma perseguição aos cristãos na Bitínia ocorrida vinte anos antes, mostra que houve muita ação oficial contra os cristãos que não ficou registrada. O Novo Testamento reflete essa mudança na atitude do governo: em Atos, Roma ainda aparece como uma força que protege os cristãos da agressão dos judeus (Atos 25:10); mas em Apocalipse, Roma é retratada como estando embriagada com o sangue dos santos (Apocalipse 17:6).

O número de mártires

Com o tempo, os relatos sobre a quantidade de cristãos mortos por sua fé foram naturalmente exagerados, como forma de dar mais glória à Igreja. Acreditava-se que os seguidores mais fiéis de Cristo eram aqueles que foram mortos por causa do seu nome. Assim, surgiram lendas que, com o tempo, atribuíram a todos os apóstolos o título de mártires (uma coletânea dessas histórias pode ser encontrada na Ante-Nicene Christian Library, volume 16, de 1873). É interessante notar que Clemente de Alexandria (Stromata 4.9) cita um antigo protesto contra a ideia de que apenas os mártires seriam salvos. Ele justifica isso mencionando casos de apóstolos que morreram de forma natural. Mesmo assim, os registros bíblicos e outros textos deixam a impressão de que um grande número de cristãos foi morto no primeiro século. Durante a perseguição judaica, diz-se que Saulo (Paulo) entrou em cada casa (Atos 8:3) e vasculhou todas as sinagogas em busca de cristãos. Já havia muitos convertidos em Jerusalém (ver Atos 2:41; 2:47; 6:7), então, a menos que se aceite a ideia de R. B. Rackham (em Atos dos Apóstolos, 1901), de que ele perseguiu apenas os judeus de fala grega (helenistas), o número de perseguidos deve ter sido muito grande. As punições incluíam prisão, espancamento e até a morte — provavelmente com a conivência dos romanos (Atos 22:4-5; 22:19). Naquela ocasião, os líderes da Igreja parecem ter escapado, mas na perseguição seguinte eles foram diretamente atingidos (Atos 12). Tiago, filho de Zebedeu, foi morto, e Pedro foi preso. Esses ataques causaram um impacto duradouro na Igreja (ver 1Tessalonicenses 2:14).

O número de mártires foi ainda maior durante as perseguições romanas do primeiro século. Tácito (Anais 15.44) fala de uma multitudo ingens — uma multidão imensa — de vítimas na perseguição de Nero, e Clemente de Roma usa expressão parecida (polù plēthos, “grande número”) em sua Carta aos Coríntios (capítulo 6). Apocalipse 13:7 mostra como todo o Império sentiu os efeitos dessa política de perseguição. A mesma ideia aparece em 1Pedro 5:8-9, que compara a fúria do inimigo à de um leão, dizendo que os cristãos, espalhados por todo o mundo romano, estavam unidos pelo sofrimento. É importante observar que tanto os judeus quanto os gentios pareciam ter os profetas cristãos como alvos principais, provavelmente porque se destacavam por pregarem o evangelho (ver 1Tessalonicenses 2:15; Apocalipse 16:6; 18:24). Os horrores cometidos pelos torturadores romanos são descritos por Tácito e Clemente: as vítimas eram crucificadas ou, num tipo de crueldade diabólica, vestidas com peles de animais para serem atacadas por cães. Ao anoitecer, alguns eram cobertos com piche e usados como tochas vivas nos jardins de Nero. No caso das mulheres, havia brutalidades ainda mais vergonhosas do que a própria morte.

Os mártires históricos

Entre os que foram mortos nas perseguições judaicas mencionadas no livro de Atos, apenas dois nomes são preservados: Estêvão e Tiago, filho de Zebedeu. Estêvão foi acusado de blasfêmia, mas o que aconteceu não foi um julgamento de verdade. Se o Sinédrio alguma vez teve que se justificar, provavelmente disse que foi um tumulto repentino e fora de controle. O martírio de Tiago é mencionado em Atos 12:2 e também por Eusébio (História Eclesiástica, livro 2, capítulo 9), que cita Clemente de Alexandria. Tiago foi decapitado, e seu comportamento impressionou tanto o acusador que ele se converteu e foi morto junto com o apóstolo. Isso deve ter acontecido antes do ano 44 d.C., pois foi nesse ano que Herodes Agripa morreu. Alguns estudiosos (como W. Bousset, em Die Offenbarung Johannis, 1896) tentaram apoiar a afirmação de Filipe de Side, segundo a qual Pápias teria dito que o apóstolo João foi morto junto com seu irmão. Mas, se isso fosse verdade, o silêncio de Atos 12:2 seria difícil de explicar. Não há razão para pensar que João morreu de outra forma que não uma morte natural. As histórias de que ele escapou de um caldeirão fervente ou que tomou veneno sem se ferir vêm de um texto gnóstico do século II chamado Atos de João. Alguns anos depois da morte do primeiro Tiago, outro Tiago — “irmão do Senhor” — foi assassinado (por volta do ano 61 d.C.). O sumo sacerdote Ananias, no intervalo entre a morte de Festo e a chegada de Albino, mandou apedrejá-lo. A descrição dramática da sua morte é feita por Hegésipo e está preservada por Eusébio (História Eclesiástica, livro 2, capítulo 23). Um relato mais breve e provavelmente mais confiável pode ser encontrado em Josefo (Antiguidades Judaicas, livro 20, capítulo 9, parágrafo 1).

O apedrejamento de Estevão, por Rambrandt (1625))
O apedrejamento de Estevão, por Rambrandt (1625)

Em Roma, a primeira sombra da perseguição de Nero caiu sobre Pomponia Graecina. As evidências das Catacumbas tornam quase certo que a “superstição estrangeira” da qual ela foi acusada (Tácito, Anais 13.32) era o cristianismo (ver Lightfoot, Apostolic Fathers, I.1, p. 30). Ela foi julgada e absolvida no ano 57 d.C. Sete anos depois, Roma pegou fogo, e Nero culpou os cristãos para desviar a raiva do povo. O sucesso dessa manobra custou à Igreja não apenas a vida de muitos cristãos anônimos, mas também a de Pedro e Paulo. Lightfoot observa (em Carta de Clemente aos Coríntios, cap. 5) que o Novo Testamento já dava indícios de que esses dois apóstolos morreriam como mártires. Em João 21:18 há uma descrição da morte de Pedro, e em 2Timóteo 4:6 em diante, Paulo escreve como alguém que sabe que seu fim está próximo. É tradição constante que ambos tenham sido mortos em Roma. Clemente os menciona juntos como “atletas” que “lutaram até a morte”, e que eram bem conhecidos dos cristãos romanos. Inácio (Carta aos Romanos 4) sugere que ambos foram mestres respeitados em Roma. Eusébio (História Eclesiástica 2.25) reúne várias fontes que confirmam isso. Ele cita Dionísio de Corinto dizendo que os dois sofreram o martírio por volta da mesma época em Roma, e menciona Gaius, um cristão romano, que descreve com detalhes os túmulos deles. Tertuliano (em Scorpiace 15 e De Praescriptione 36) afirma que Pedro foi crucificado, e Orígenes (segundo Eusébio, História Eclesiástica 3.1) diz que ele pediu para ser crucificado de cabeça para baixo. A história do “Domine, quo vadis?” (Senhor, para onde vais?) é preservada no pseudo-Ambrósio. A morte de Pedro é geralmente datada no início da perseguição de Nero, por volta do ano 64. Sua carta sugere que ele já esperava a perseguição, e a tradição de que ele foi sepultado no Vaticano indica que foi um dos mortos após o grande incêndio. Eusébio (História Eclesiástica 3.30) repete a história de Clemente de Alexandria de que Pedro viu sua esposa sendo levada à morte antes dele e a consolou, dizendo que se alegrava por ela ter sido chamada para “ir para casa” – uma atitude característica dos mártires cristãos. Tertuliano e Orígenes também dizem que Paulo foi morto em Roma, sendo decapitado. Jerônimo (De Viris Illustribus 5) afirma que os dois apóstolos morreram no mesmo dia. Apesar de essa tradição ser refletida na comemoração conjunta deles em 29 de junho, ela não é muito provável, e há variações nessa tradição (ver L. Duchesne, Liber Pontificalis, 1886–92, vol. 1, p. 119).

A morte de Antipas de Pérgamo (Apocalipse 2:13), segundo a lenda, aconteceu durante o reinado de Domiciano, quando ele teria sido queimado vivo dentro de um touro de bronze. Mas a expressão “nos dias de Antipas” sugere que sua morte aconteceu alguns anos antes do livro do Apocalipse ser escrito. É mais provável que Antipas tenha sido morto em alguma perseguição desconhecida sob os primeiros imperadores da dinastia Flaviana.

Durante o governo de Domiciano, três pessoas sofreram, e é bastante provável que fossem cristãs. Uma delas foi o próprio primo do imperador, o cônsul Flávio Clemente, que foi condenado, segundo Suetônio (Domiciano, 15), “ex tenuissima suspicione”. Se Clemente realmente fosse cristão, ele não poderia participar de cerimônias públicas que envolviam adoração ao imperador. Isso se encaixa na acusação feita por Dião Cássio (67.14), de que ele foi condenado por atheotēs, ou seja, “sacrilégio”, e por praticar costumes “judaicos”. Também ajuda a entender o comentário sarcástico de Suetônio, que disse que Clemente demonstrava uma “indolência desprezível”. Ao mesmo tempo, sua esposa, Domitila, foi exilada para a ilha de Pontia (Jerônimo, Epístola 108 [ou 86], a Eustóquio). Dião também menciona M’. Acílio Glábrio como outra vítima da fúria de Domiciano. Não há provas definitivas de que ele fosse cristão. A negação feita por Lightfoot (em Apostolic Fathers, I.1, p. 81) é questionada por Ramsay (na obra citada, p. 261).

Com o imperador Trajano, temos o último mártir desse período. Eusébio (História Eclesiástica, 3.32) relata que Simeão, filho de Clopas e “segundo bispo de Jerusalém”, foi preso por ser descendente de Davi e cristão. Depois de muitos dias de tortura, foi crucificado. Eusébio acredita que com ele morreu o último sobrevivente da Era Apostólica. [C. T. Dimont, Hastings]